A matriz elétrica e a decisão que vai impactar 200 milhões de brasileiros
Brasil poderia expandir sua base de forma mais competitiva apenas com o avanço das renováveis, reduzindo ainda mais a pegada de carbono do setor elétrico e trazendo mais competitividade no preço.
O futuro presidente terá uma decisão a ser tomada sobre a eletricidade que chega a 200 milhões de brasileiros em cerca de 90 milhões de pontos de luz nas cinco regiões do país. A expansão da capacidade de geração se baseará em fontes renováveis – como eólicas, solares e biomassa de cana de açúcar – ou o país assistirá ao aumento da participação de termelétricas a diesel, gás natural, carvão e fontes nucleares?
A resposta terá impacto sobre o bolso e os pulmões da população em um momento em que os combustíveis fósseis ganham espaço no mundo diante da guerra entre Ucrânia e Rússia.
Nas últimas duas décadas, o setor elétrico brasileiro assistiu a uma transformação. Em junho de 2001 – quando o país adotou um racionamento de energia que reduziu em 20% o consumo médio em residências e indústrias – 90% da geração do país vinha de hidrelétricas e cerca de 10% de térmicas. O medo de uma nova crise impôs mudanças e levou ao aumento do uso de fontes térmicas, como gás natural, diesel, que são mais caras e poluentes.
Estudo do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), divulgado neste ano, apontou que a fonte térmica é aquela com a segunda maior participação na capacidade instalada, com crescimentos mais significativos de 2002 a 2004, de 2008 a 2016. Segundo a análise, “Após o período do racionamento de energia elétrica em 2001, houve um pico de crescimento da capacidade instalada das fontes térmicas de 9.075 MW de 2002 a 2004. Entre 2008 e 2016, cerca de 20 GW adicionais de térmicas foram contratados.”
O número irá crescer em razão de decisões do Congresso que impuseram a contratação de 8 GW de térmicas a gás natural e a extensão de subsídios até 2040 para usinas a carvão. A expansão da camada pré-sal, em que quando se extrai óleo vem associado a gás, também poderá se refletir na decisão de uso maior das térmicas com base nesse insumo, o que criará uma pergunta: o gás irá para térmicas ou para a indústria?
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Hoje, as hidrelétricas respondem por cerca de 60% da eletricidade do país. Eólicas e solares – que há 20 anos, geravam menos de 1% do que o Brasil consumia – hoje representam cerca de 20%. O gás natural também ganhou espaço: hoje cerca de 10% da capacidade instalada no país é de termelétricas com base no insumo, sendo que na estiagem do ano passado, quando a palavra racionamento voltou a ser discutida, essas usinas chegaram a responder por 25% da eletricidade consumida no país. Lenha, carvão e nucleares respondem por outros 3%.
O desenho da matriz dos próximos 10, 20, 30 anos está sendo decidido agora.
Saber qual fonte terá avanços implica entender particularidades de cada uma delas. O avanço de fontes variáveis como eólicas e solares implica esse questionamento. No jargão do setor, elas são consideradas fontes não despacháveis. O que isso significa? Que elas não podem ser despachadas a qualquer momento, uma depende da força dos ventos, que geralmente é mais forte de madrugada; outra depende do sol. Para que o sistema opere com mais segurança e flexibilidade, ganha corpo o debate sobre quais fontes poderão ser despacháveis, ou seja, poderão ser imediatamente despachadas para atender à demanda de casas, indústrias e supermercados.
Mais renováveis, mais competitividade
Estudo ainda em andamento da PSR, mais reputada consultoria do setor elétrico, feito para o Banco Mundial, mostra que o Brasil poderia expandir sua base de forma mais competitiva apenas com o avanço das renováveis, reduzindo ainda mais a pegada de carbono do setor elétrico e trazendo mais competitividade no preço, caso fosse essa a decisão tomada. Mas a expansão de fontes variáveis exigiria avanços regulatórios. Um deles é que as hidrelétricas fossem remuneradas por um outro serviço além de gerar energia. Seus reservatórios são essenciais para planejar o sistema e para que essas usinas ofereçam previsibilidade.
“Essa maior presença exigirá que as hidrelétricas sejam remuneradas por um serviço que elas prestam como baterias de armazenamento”, destaca o presidente da consultoria, Luiz Barroso, em entrevista à Repórter Brasil. Hoje parte do custo da expansão via renováveis é feita com a cobrança de Encargos Serviços do Sistema (ESS), parando no colo do consumidor. “Se a decisão for feita só com renováveis, parte desse custo teria de ir para as renováveis.”
As mudanças climáticas têm trazido desafios. A incerteza cada vez maior na operação do sistema exige ferramentas extras, conforme disse à reportagem o diretor-geral do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), Luiz Carlos Ciocchi. Uma delas seria a criação de um programa estrutural de resposta da demanda dos grandes consumidores, que teriam a opção de deslocar sua produção para horários em que a energia é mais barata. Hoje o horário de ponta do sistema é à tarde, com o acionamento de ar-condicionado nos escritórios. “Seria mais barato que acionar térmica no atendimento da ponta”, afirma. O programa deverá fazer sua estreia em breve no país.
Os efeitos climáticos estão se tornando mais extremos, o que cria mais variações sobre o sistema. O crescente uso múltiplo das águas traz desafios para o planejamento e para a operação do sistema elétrico e pode levar a uma postura mais conservadora em ambos. Isso leva a reflexões. “Se eu tenho mais dificuldade para fechar a torneira do sistema, então talvez seja preciso guardar mais água no reservatório porque, se vier hidrologia muito ruim, eu tenho um estoque maior. Tem duas estratégias: ou eu guardo mais água preventivamente ou eu trabalho para aprimorar a gestão e governança do uso múltiplo de águas”, afirma Thiago Barral, presidente da Empresa de Pesquisas (EPE), órgão estatal de planejamento.
Uma outra opção para assegurar potência ao setor são as termelétricas a gás natural. Hoje mais de 70% da produção de gás natural ocorre no mar, sendo 86% dela associada ao petróleo. Essa característica requer uma demanda firme para o gás natural, sob o risco de comprometer a curva de produção de petróleo projetada para dobrar até o final da década, diz Adriano Pires, sócio do Centro Brasileiro de Infraestrutura e que foi assessor da diretoria da Agência Nacional do Petróleo. Portanto, para o gás nacional associado – seja ele em terra ou no mar – ser competitivo seria preciso uma demanda firme que para existir necessita de âncoras como térmicas inflexíveis e expansão da infraestrutura de gasodutos. Isso permitiria expansão da oferta nacional e menor dependência de importações.
Para ele, a Lei 14.182, que autorizou privatização da Eletrobras, também implicou a contratação de 8.000 MW de termelétricas movidas a gás natural denominadas inflexíveis, com níveis de fator de capacidade de 70% a partir de 2026. Isso significa que 5.600 MW dessas termelétricas serão despachadas continuamente a partir de 2026, independentemente da quantidade de chuvas, sejam elas em excesso ou em falta. Ele pondera que, com isso, o nível dos reservatórios será recuperado ano após ano, reduzindo o déficit histórico e lidando melhor com futuras crises hídricas.
Solução mais cara e mais poluente?
Nesse debate, há ainda dois pontos a se considerar: preço e meio ambiente. As térmicas podem ser uma solução mais cara. Para garantir a oferta de eletricidade ano passado, em plena crise hídrica, despacharam-se usinas que cobram R$ 2,4 mil por megawatt, caso da termelétrica de William Arjona, em Campo Grande (MS). Eólicas e solares geram a partir de R$ 120 o MWh. O parque termelétrico brasileiro conta com muitas usinas antigas, que gastam mais combustível para produzir menos energia.
Segundo problema: as emissões de poluentes. Estudo do Instituto de Energia e Meio Ambiente aponta que a geração das usinas termelétricas aumentou de 30,6 TWh em 2000 para 84,8 TWh em 2020, quase o triplo. Isso teve impacto sobre a poluição. De acordo com a análise, “consequentemente, o total de emissões de gases de efeito estufa (GEE) no setor elétrico brasileiro aumentou 90% entre 2000 e 2020”.
As emissões irão crescer, já que, para entre 2026 e 2030, há a previsão da instalação de 8 GW em termelétricas a gás espalhadas em todas as regiões do Brasil e com a postergação de subsídios e da vida útil de usinas a carvão mineral até 2040. “O contexto atual do setor elétrico apresenta elevados riscos para os planos de descarbonização rumo a uma matriz 100% renovável, bem como para a melhoria da qualidade do ar no país. Infelizmente, o que temos visto é o país caminhar na direção oposta, com a expansão da operação de usinas termelétricas fósseis”, alerta André Luis Ferreira, diretor-executivo do Iema.
O uso do gás natural para energia tem outra implicação. O gás do pré-sal ganhou importância estratégica em um momento em que o insumo bate recordes na Europa. A guerra entre Ucrânia e Rússia fez os russos reduzirem o envio de gás para a União Europeia. Responsável pelo abastecimento de um terço da energia no bloco, o insumo da Rússia era vital para assegurar o aquecimento das casas e a energia nas linhas de produção. Sem ele, o racionamento deve ser adotado em muitos países europeus. A escassez fez os preços do gás natural subirem mais de seis vezes em relação ao período antes da invasão russa à Ucrânia.
Importar gás nos próximos 3 a 5 anos será custoso, uma vez que a dependência histórica europeia com a Rússia não se esgotará em dias ou meses. O gás do pré-sal, que está associado ao óleo extraído, pode ir para a energia ou para a indústria. “O gás caro é um dos obstáculos da indústria brasileira”, diz o presidente da Associação Brasileira da Indústria do Vidro (Abividro), Lucien Belmonte.